A organização não governamental Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde realiza grupos reflexivos com homens denunciados por crimes da Lei Maria da Penha há cerca de 10 anos na cidade de São Paulo (SP). Toda segunda-feira, a partir das 18h, os portões de nossa casa, em Pinheiros, se abrem para uma diversidade de homens que participam das reuniões dos grupos reflexivos mediados por uma equipe multidisciplinar. O que todos têm em comum? São homens e foram denunciados por crimes de violência contra a mulher. Afora isso, apresentam uma multiplicidade de cores, classes, escolaridades, idades, profissões, religiões, rendas, entre outras características, que atravessam a maneira como negociam com as imposições colocadas pelas políticas de gênero vigentes em nossa sociedade.
Com o advento do COVID-19, suspendemos os encontros dos grupos reflexivos a partir do dia 9 de março para assegurar que os participantes estivessem em segurança, reduzindo a circulação pela cidade. Contudo, as semanas passaram e acompanhamos o crescimento dos índices de violência contra a mulher em diferentes países do mundo, bem como nos preocupamos quanto às taxas de suicídio e abuso de álcool e outras drogas, entre as quais se destaca a proeminência dos homens. Entendemos que as medidas de isolamento social para reduzir os índices de transmissão do COVID-19 se estenderiam e, por isso, seria essencial que pensássemos em formas de retomar nossos trabalhos construindo espaços de troca e reflexão entre homens. Foi assim que, na noite do dia 13 de abril, realizamos o primeiro encontro virtual do grupo reflexivo para mapear as condições dos sujeitos com os quais trabalhamos e refletir sobre formas de lidar com as ansiedades e conflitos que vem se destacando neste momento.
O relógio marcava 17h53 no computador quando entrei na sala criada a partir de um software livre de videoconferência. Havíamos orientado os participantes que possuíam wi-fi em casa a utilizar a ferramenta para nos comunicarmos. Já estavam Heitor* e Roberto, que conversavam enquanto esperavam os demais. Avisei que daríamos 10 minutos de tolerância e iniciamos a conversa com a participação de mais dois facilitadores que compõem a equipe técnica. À medida que os homens foram entrando, fomos contando sobre as nossas próprias situações durante a quarentena. Na equipe, alguns de nós estávamos sozinhos em casa e lidávamos com a ansiedade causada pelo isolamento. Enquanto isso, outros haviam se isolado com os pais e se ocupavam de resguardá-los, fazendo as atividades externas para não expor os mais velhos ao vírus.
Entre os participantes, encontramos situações semelhantes: havia homens solteiros que estavam passando a quarentena com suas mães e famílias; outros permaneciam inteiramente sozinhos e alguns deles continuavam trabalhando de modo remoto. Uma situação em especial se destacou. Roberto, aquele que havia entrado na sala primeiro, trabalha como motorista de aplicativo e não teria tido condições de suspender suas atividades. Permanecia trabalhando, mesmo sendo idoso, fumante e hipertenso. Roberto afirmou que só trabalharia até a semana seguinte para “aguentar” por três meses, mas mencionou a preocupação com o fato de se expor à doença.
Distinto daquilo que esperávamos, ao observar a proeminência de homens na rua – aparentemente, os principais sujeitos a desafiarem a medida de distanciamento -, os participantes do grupo reflexivo estavam se esforçando a respeitar a quarentena e, inclusive, se mostraram bastante críticos à postura do governo federal ao tratar com displicência a pandemia.
Ao retomarmos as atividades dos grupos reflexivos de maneira extraordinária, fugindo à normalidade, encontramos um cenário no qual aquele grupo de homens se mostrava inquieto e preocupado, mas consciente da necessidade de cuidar de si para cuidar do outro. Nesse sentido, respiramos com algum alívio, mas ainda angustiados com a perspectiva de que muitos homens ainda carecem de um repertório mais amplo para lidar com as limitações que o coronavírus apresenta.
Precisamos falar com os homens e precisamos oferecer a eles ferramentas que os capacitem a nomear angústias, cuidar de si e do outro e driblar aquilo que os coloca como principais agentes quando o assunto é violência contra a mulher, suicídio, abuso de álcool e outras drogas, adoecimento por más práticas em saúde, entre outras problemáticas. O cenário que se anuncia é de crise no campo da saúde e na economia. Precisamos falar com os homens porque eles fazem parte disso e são capazes de tecer alternativas que não só minimizem sofrimentos mentais e físicos, mas possibilitem comunidades de cuidado.
*Os nomes usados no artigo são fictícios para preservar a identidade dos homens participantes dos grupos reflexivos.
Antropóloga e colaboradora da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, atuando no Núcleo de Masculinidades, principalmente com pesquisas, cursos e intervenções que abordam questões de gênero, masculinidades, violências e feminismos. É doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (PPGAS/UNICAMP) e mestra em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (PPGAS/USP). Integra o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (UNICAMP) e o Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP).
Contato: isabela.venturoza@yahoo.com.br