Há alguns anos temos debatido dentro e fora do movimento feminista sobre o que se convencinou chamar de “cultura do estupro”. Como em outras sociedades, a brasileira se depara com a forte naturalização das violências sexuais cometidas contra as mulheres e isto se relaciona diretamente com ideias presentes no senso comum que alimentam o modo pelo qual a sociedade enxerga e trata as mulheres.
Como um exemplo, podemos observar as crenças segundo as quais o homem teria um desejo sexual incontrolável, as mulheres “fariam por merecer as violências sexuais de acordo com suas práticas, as roupas que vestem e por onde circulam e, por fim, que os atos violentos do homem seriam esperamos, senão inevitáveis (por culpa da mulher e em grau de sua falta de “decência” ou comportamento sexual “lascivo”).
Tais ideias compõem aquilo que algumas analistas e atrizes do movimento feminista nomearam como “cultura do estupro”. Isto é, temos homens cujo apetite sexual é tão desenfreado que se torna fácil, senão “natural” que suas vontades passem por cima dos direitos e do consentimento das mulheres. Nesse contexto, as vítimas de violência sexual são também facilmente culpabilizadas por estarem na rua em certo horário, pelas circunstâncias nas quais “se colocou”, pelas roupas que usava e por sua própria moralidade sexual. Assim, em casos de violência sexual, frequentemente antes de ser vítima, a vítima é réu. Precisa provar que “não fez por merecer”. Movimentos como a Marcha das Vadias, iniciado primeiramente no Canadá, se levantam diante de acusações machistas para manifestar que nós, mulheres, podemos nos vestir como quisermos, circular por qualquer lugar em qualquer horário e ter vidas sexuais ativas e movimentadas sem que isso justifique qualquer forma de violência, incluindo aí a violência sexual.
A chamada “cultura do estupro”, também vai encontrar manisfetações mais sutis a depender de quem as avalia: ela frequentemente está presente em propagandas de cerveja e na maneira como alguns homens entendem como natural manter relações sexuais com mulheres em situações vulneráveis, na qual não é possível consentir, por exemplo quando estão alcoolizadas em festas ou sob efeito de outras drogas e até mesmo dormindo. Tais situações podem ocorrer com desconhecidos, mas também se dão dentro de relações de namoro e casamento.
Entre os efeitos dessa visão de mundo que naturaliza a violência contra as mulheres, vamos observar o medo com que meninas e mulheres conviverão desde cedo de andar nas ruas, ocupar os espaços, utilizar determinadas roupas, vivenciar a própria sexualidade, sempre se questionando sobre o risco contido em certas situações, que pode aproximá-las de violências sexuais. Muitas mulheres ao sofrerem violências, passam por processos de vergonha e autoculpabilização, o que guarda relação com a subnotificação das violências sexuais, pelo estigma ironicamente associado à própria vítima, pela culpa imputada a ela. Como efeito, as mulheres vivenciam um mundo que restringe drasticamente nossa liberdade, limitando nossas ações e circulação, por exemplo. Dessa maneira, nosso direito à cidade e à vida é limitado por nossa condição de gênero.
Recentemente acompanhamos o julgamento de André Cardoso Aranha, acusado de estuprar Mari Ferrer. Durante o julgamento, testemunhamos a humilhação a qual a vítima foi submetida e a violência institucional praticada pelo próprio Estado que naturaliza a culpabilização da mulher pelas violências sofridas. Tornou-se evidente também a maneira como o judiciário é composto por pessoas e moralidades específicas, que vão selecionar aqueles que podem ser entendidos como criminosos e aqueles que não adentram tal esfera (i.e. homens brancos e da elite do país).
Há décadas, as feministas têm desnaturalizado a ideia segundo a qual o desejo dos homens é desenfreado e que as mulheres é que precisam se proteger para não sofrerem violências sexuais. Para enfrentar as concepções machistas presentes nesse campo, é notável que precisamos nos colocar contra as mesmas em nossas próprias redes de afeto e cotidianas, entre familiares, amigos e colegas de trabalho, por exemplo. E nesse sentido, é preciso que os homens participem ativamente e que não recaia apenas sobre as mulheres o trabalho de transformar as relações sociais.
Precisamos fortalecer também os espaços de acolhida, que nos foram ensinados pelos coletivos feministas, para que as vítimas de violência se sintam confortáveis para conversar sobre os abusos sofridos e sobre formas de enfrentar o problema.
Não cabe mais aos homens – como nunca coube, embora ocorresse – fazerem vista grossa para colegas que possam ter cometido algum tipo de violência. É necessário construir espaços de ação direta com os homens, para refletir sobre masculinidades, sexualidade, consentimento e violência sexual. Estupro não é sexo, é violência. E as relações sexuais (o que não inclui apenas o sexo penetrativo, para o conhecimento de sujeitos como Robinho e André Aranha), só podem ocorrer quando há consentimento de todas as partes envolvidas.
É preciso também compreender que o problema é individual e apenas dos “estupradores”. Suas práticas estão sempre informadas pela sociedade que produz ideários machistas e que ensina aos homens desde cedo que o corpo das mulheres é espaço público. Mantemos relações assimétricas que frequentemente subalternizam as mulheres e sua liberdade.
Nesse sentido, é papel da sociedade, que inclui os próprios, e do Estado, transformar a desigualdade presente nas relações e produzir outras formas de estar no mundo nas quais as mulheres não sejam desrespeitadas e vistas apenas como objeto do prazer masculino. O poder público deve pensar e implementar políticas públicas, campanhas e ações de enfrentamento à violência que de maneira socioeducativa e não meramente punitivista aproxime os homens de concepções de masculinidade mais cooperativas e respeitosas das liberdades e direitos alheios. Os homens devem participar da mudança e propor conversas em seus próprios núcleos de afeto, trabalho e comunidade.
A educação e os jovens são também espaços e sujeitos privilegiados de produção de equidade. A transformação de nossas instituições e dos sujeitos que compõem a sociedade passa por oferecer durante a infância e a juventude informações sobre o que é direito, o que é consentimento, o que é sexo, o que é violência. Nossos corpos nos pertencem e ninguém pode invadi-los. Crianças precisam saber disso, mulheres precisam saber disso, mas talvez principalmente os homens precisam saber disso.
Precisamos que perpretadores de violência sexual sejam responsabilizados pelos atos, mas também precisamos enxergar que o fenômeno é social e precisa de soluções coletivas. Devemos nos organizar para conversar abertamente sobre tais questões, e nos perguntar sobre o referencial que permite aos homens crescer acreditando que “podem tudo”. Não podemos romantizar as investidas à força na balada e os caras não podem mais fechar os olhos ou naturalizar a prática de amigos que, por exemplo, transam com garotas desacordadas em festas. A violência sexual não podem ser naturalizada sob nenhum pretexto.
Antropóloga e colaboradora da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, atuando no Núcleo de Masculinidades, principalmente com pesquisas, cursos e intervenções que abordam questões de gênero, masculinidades, violências e feminismos. É doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (PPGAS/UNICAMP) e mestra em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (PPGAS/USP). Integra o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (UNICAMP) e o Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP).
Contato: isabela.venturoza@yahoo.com.br