Na manhã do dia 3 de agosto de 2019, um homem branco de 21 anos, assassinou 22 pessoas e feriu outras 26, em uma unidade do Walmart, em El Paso, Texas, nos Estados Unidos.
Investigadores suspeitam que o atirador era um seguidor da alt-right e apoiador de Donald Trump, e que seria o autor de um manifesto anti-imigração veiculado em um website extremista, o 8chan. No manifesto, ele se posiciona contra a “mistura de raças” e a “invasão hispânica” no Texas.
O tiroteio tem sido entendido como um crime de ódio e constitui o episódio mais letal neste ano nos Estados Unidos. Apesar disso, com apenas algumas horas de diferença, no dia seguinte, outro tiroteio teve lugar em Dayton, Ohio, no qual dez pessoas foram mortas, incluindo o atirador, e 27 foram feridas. O atirador era também um homem branco jovem, de 24 anos. Trata-se do décimo primeiro massacre desde o início de 2019 nos Estados Unidos, totalizando 71 mortos.
Da década de 1980 aos dias de hoje, foram 188 tiroteios em massa no país. A grande maioria deles, salvo raras exceções, tiveram como perpetradores homens. Os Estados Unidos se encontram na dianteira no ranking de países com maior número de tiroteios em massa, mas não são o único local onde esse tipo de fenômeno ocorre. Infelizmente, temos homens jovens enfurecidos e com acesso a armas em inúmeros países do mundo.
No Brasil, em uma manhã de março de 2019, dois homens jovens, de 17 e 25 anos, entraram em uma escola da qual foram alunos anteriormente, no município de Suzano, no Estado de São Paulo, e mataram oito pessoas. Após o ataque, um dos atiradores atirou no parceiro e em seguida se suicidou. Conhecido como o Massacre de Suzano, o episódio corresponde ao oitavo ataque em escolas no Brasil. Investigações apontam que os dois jovens planejaram o massacre durante cerca de um ano, usando uma arma de fogo e também contando com uma besta, um arco e flecha e uma machadinha. Os dois também procuraram por ajuda em um fórum da internet, tal como o 8chan, no qual são comuns apologias à violência e intolerância a minorias. De acordo com a polícia, entre as motivações do crime estão o bullying que sofriam na escola e o desejo de superar o Massacre de Columbine, nos Estados Unidos.
Historicamente, tiroteios em massa tem como protagonistas homens. Uma série de fenômenos em que se destaca a violência contra um Outro – mas também comportamentos de alto risco contra si mesmos – tem como principais perpetradores sujeitos do gênero masculino. Comumente, quando pensamos a violência marcada por gênero, visualizamos homens agredindo mulheres. Isto ocorre porque de fato homens agridem mulheres, sistematicamente, em diferentes contextos. Contudo, ao refletir sobre os vínculos entre violência e gênero, esquecemo-nos algumas vezes de pensar não só sobre como os homens são os principais agressores das mulheres, mas também os principais agressores de outros homens. Esquecemo-nos também de considerar o quão a experiência da masculinidade é violenta para o próprio sujeito que a encarna, que com alguma frequência passa a vida inteira buscando performar um modelo que não violenta apenas mulheres, mas outros homens e a si mesmo.
Assim, no caso brasileiro, dados estatísticos demonstram como as mulheres são agredidas e mortas, em larga escala, diariamente, por homens conhecidos no espaço doméstico. Enquanto isso, os homens morrem ainda em maior número, mas dessa vez no espaço público e pela mão de desconhecidos, também homens. São também a população mais encarcerada e que não raramente passa a vida sem o aprendizado do cuidado e do autocuidado, não buscando ou demorando a buscar ajuda médica e psicológica e sofrendo com altas taxas de suicídio.
Por muito tempo, nós, pesquisadoras no campo feminista, refletimos sobre as maneiras pelas quais as mulheres foram subjugadas por homens. Demoramos algum tempo para perceber que o problema passaria não só pelo fortalecimento e respeito às mulheres e a pessoas em choque com categorizações binárias, mas também pela desconstrução das masculinidades e pela ampliação de formas de estar no mundo oferecidas a sujeitos que se identificam como homens.
No momento, percebemos, de um lado, que pensar apenas em masculinidade oculta outras formas de diferenciação que distinguem a experiência de homens no mundo, posicionando-os em diferentes localizações quanto a relações de poder. Raça, classe, nacionalidade, deficiência, entre outras formas de classificação (e hierarquização) organizam os sujeitos de maneiras distintas, fragilizando noções restritas e estáticas de “privilégio” e poder. De outro lado, percebemos que, ao encarar determinadas problemáticas, torna-se indispensável operar com abordagens que encarem os fenômenos em sua complexidade, não apenas elegendo gênero ou raça ou classe ou nacionalidade como perspectivas explicativas que atuam sozinhas.
Contemporaneamente, vemos que o crescimento de uma determinada direita, marcada pela defesa aberta ou sutil de uma nacionalismo branco, do sexismo, contra minorias sexuais, religiosas, entre outras, fortalece ou coloca à céu aberto discursos capazes de inflamar as fantasias de identidade mais violentas de homens que não pensam duas vezes antes de pegar em armas para assegurar seu poder. Figuras como Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil, abrem precedentes para que políticas sexistas, racistas e elitistas sejam incorporadas como políticas de Estado e vistas assim como naturais. A aniquilação do Outro, daquele que é diferente de mim ou que questiona ou ameaça meu poder, torna-se não exceção, mas a regra constituinte das relações. Nesse sentido, não surpreende que as fragilidades ou medos de um homem jovem sejam enfrentadas na bala.
Antropóloga e colaboradora da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, atuando no Núcleo de Masculinidades, principalmente com pesquisas, cursos e intervenções que abordam questões de gênero, masculinidades, violências e feminismos. É doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (PPGAS/UNICAMP) e mestra em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (PPGAS/USP). Integra o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (UNICAMP) e o Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP).
Contato: isabela.venturoza@yahoo.com.br