Aposto que você já ouviu de um médico que seu colo do útero estava com uma feridinha que precisava ser cauterizada.
Sentiu dor ou não tanto, ficou preocupada com isso, aumentou a frequência de idas do médico e papanicolau para garantir que não tinha “hpv” ou algo pior. Ficou encucada de ter uma ferida dentro de si, uma ferida que não pôde ver ou entender bem, mas que precisava de cuidados e que agora já está resolvida, pois foi queimada.
E se você soubesse que essa ferida do colo do útero é, na maioria das vezes, uma coisa benigna chamada ectopia?
A ectopia é o aparecimento das células glandulares no colo do útero, células essas que estão sempre presentes, ora mais pra dentro, ora mais pra fora. Ela é comum e não exige qualquer tratamento se for assintomática e se o papanicolau estiver normal. A exposição aos nossos hormônios e a hormônios sintéticos (como a pílula) fazem com que as células glandulares do colo fiquem expostas, causando essa aparência avermelhada no centro do colo. É comum em usuárias de pílula ou no período fértil, tendendo a desaparecer na menopausa (pela diminuição dos hormônios). São as células glandulares as responsáveis por produzir nosso muco, esse muco que fica elástico no período fértil e que é tão importante para quem se acompanha ao longo do ciclo com percepção de fertilidade.
Acontece que chamar esse fenômeno fisiológico ou, ao menos, muito comum, de ferida gera um impacto tremendo. Ferida remete a doença, a algo que não vai bem, a algo que precisa ser cicatrizado, curado, tratado.
A ectopia não precisa ser tratada, ela é uma consequência de nossa fisiologia ou de uma resposta do corpo aos hormônios. É possível que o corrimento incomode ou que haja sangramento nas relações sexuais às vezes, pois as células glandulares possuem maior vascularização e fragilidade e pensar num tratamento ou formas de minimizar os sintomas chatos é bem legítimo e deve ser debatido em decisão compartilhada.
Fazemos um esforço no coletivo de desprescrever, desmedicalizar e desdiagnosticar pessoas que não se beneficiam dessas intervenções e diagnósticos, que se sentem adoecidas com eles e, pasmem!, tem mais risco de morte e morbidade.
Nenhum diagnóstico é neutro, as palavras não são neutras.
Se estamos com uma infecção no colo do útero que exige antibiótico, isso não é uma ferida tampouco: é uma infecção e precisa ser tratada. Se temos alteração de papanicolau (nic 1, 2 ou 3), isso é uma alteração pré-maligna que merece tratamento e explicação.
Ferida do colo do útero confunde, medicaliza, impacta negativamente a saúde de mulheres e outras pessoas com útero.
Sobre a autora:
Luiza Cadioli é médica de família e comunidade formada pela FMUSP, atua no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde desde 2014 e em um posto de saúde da Zona Oeste de São Paulo desde 2017.