Com alguma frequência, a equipe do nosso Núcleo de Masculinidades conduz debates sobre feminismo em escolas. Nessas experiências, não é raro que garotas jovens estejam com pautas do feminismo e uma série de informações sobre o movimento na ponta da língua. Já os garotos, por outro lado, se mantêm em silêncio, acreditando que a conversa não os diz respeito ou – pior – os acusa de algo que nem sabe que fizeram. Quando essa última opção se faz proeminente, eles assumem posturas mais defensivas, praticamente acreditando que o feminismo é contra eles.
Um dos objetivos das atividades realizadas pelo Núcleo de Masculinidades é demonstrar não só que os feminismos não são contra os homens, mas, ao contrário, oferecem boas ferramentas para que eles se repensem no mundo. O ato de repensar nossas posturas e identidades, em termos de localizações de gênero, se faz a partir da recusa em aceitar definições que restrinjam nossas vidas em função do sexo com o qual fomos assignados ao nascimento.
O que isto significa? A sociedade em que vivemos cria uma série de expectativas (com caráter normativo, isto é, regulatório) a partir do momento em que um ultrassom ou o nascimento indica – muitas vezes através da identificação de uma genitália, mas não só – que somos homens ou mulheres. Nesse instante, a identificação como menino ou menina prescreverá uma série de características e posicionamentos que deveremos apresentar ao longo de nossas vidas e que muitas vezes serão opostos e mutuamente excludentes. Uma menina deve, então, se comportar “como menina”, desde a forma como se senta até uma habilidade mais pronunciada para cuidar da casa e dos outros. Já um menino deve ser forte, viril, menos emotivo que as meninas, entre outros tantos lugares comuns.
A questão é que historicamente ser menina significava – e infelizmente ainda significa – ter acesso a menos oportunidades e direitos. Por isso, foram as mulheres que primeiramente estranharam e reivindicaram a “desnaturalização” de seu lugar no mundo. Vale sempre lembrar que há não muito tempo atrás, as mulheres eram vistas como, por natureza, menos inclinadas à razão, ao conhecimento, e, assim, restringidas aos cuidados domésticos e à vida como mães e esposas. Aos homens eram reservados o espaço público, o saber, a liberdade, a política, o poder sobre o corpo das mulheres e toda uma série de direitos dos quais não somente as mulheres estavam alienadas, mas também as populações marginalizadas (negros, pobres, indígenas, imigrantes, entre outros).
Assim, ao reivindicar um lugar não subalterno, as mulheres afirmaram que deveriam ser respeitadas como sujeitos e não apenas tratadas como esposas, mães ou filhas de alguém. O feminismo garantiu o voto às mulheres e o direito à educação formal, assim como politizou a esfera privada. O movimento demonstrou como diferentes questões – a sub-representação das mulheres na política, a desigualdade salarial entre homens e mulheres, a violência doméstica e familiar e o trabalho doméstico, para citar apenas alguns – precisam ser enfrentadas para a construção de sociedades mais justas.
O momento, que vem há pelos três décadas se desenhando e se abre, nos últimos anos com mais força, demonstra não somente que “não se nasce mulher; torna-se”, mas que também os homens não nascem homens. Eles são ensinados. Ou seja machismo, violência, ausência de auto-cuidado e cuidado com o outro, como outros tantos elementos forçosamente vinculados aos homens não são coisas “da natureza” dos mesmos. São elementos aprendidos e vinculados à identidade masculina, mas que podem ser transformados, abrindo caminho para masculinidades mais diversas e saudáveis, não restritas a binarismos de gênero (homem = forte, mulher = delicada).
Para nós do Coletivo, o trabalho em torno de novos conceitos de masculinidade surge assim sob a perspectiva de um feminismo que se questiona sobre a violência que homens cometem contra mulheres, mas também contra outros homens e contra si mesmos. Por que os homens matam tanto, mas também morrem tanto? É preciso pensar masculinidades para que homens, mulheres e sujeitos que não se encaixam nessas nomenclaturas possam permanecer vivos, vivendo vidas que valham a pena serem vividas.
Antropóloga e colaboradora da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, atuando no Núcleo de Masculinidades, principalmente com pesquisas, cursos e intervenções que abordam questões de gênero, masculinidades, violências e feminismos. É doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (PPGAS/UNICAMP) e mestra em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (PPGAS/USP). Integra o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (UNICAMP) e o Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP).
Contato: isabela.venturoza@yahoo.com.br