Entre os dias 03 e 06 de agosto aconteceu em Brasília uma audiência pública que debateu a ADPF 442, apresentada ao Supremo Tribunal Federal pela ANIS – Instituto de Bioética e o PSOL, em 8 de março de 2017, em que se questiona o artigo do código penal que criminaliza as mulheres que recorrem ao aborto.
Foram mais de 50 expositores, das mais diversas áreas da ciência, entidades religiosas, organizações feministas e de direitos humanos, trazendo à luz do debate, argumentos prós e contras a descriminalização do aborto, durante mais de 20 horas de audiência.
O Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde esteve presente na audiência pública integrando o grupo com mais cinco organizações e coletivos – Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), Criola, Grupo Curumim Gestação e Parto e Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) – em uma exposição coletiva, onde foi defendida a descriminalização do aborto. Nossa participação aconteceu no primeiro dia da audiência, e fomos representadas pela Natalia Mori Cruz (CFEMEA), Paula Viana (Grupo Curumim) e Fernanda Lopes (Criola). Você pode assistir à nossa exposição coletiva aqui (inserir hyperlink quando sair o vídeo).
Nossa argumentação esteve baseada no histórico de atuação dos movimentos feministas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos e a relevância do espaço dialógico em sede da ADPF 442 frente à onda conservadora e restritiva de direitos das mulheres, no impacto da criminalização do aborto para as mulheres negras e pobres: racismo estrutural, violência institucional e estigma social, e no direito ao aborto como realização da vida e a possibilidade do aborto medicamentoso.
O balanço geral do primeiro dia da audiência pública foi bastante positivo. As argumentações expostas abordaram principalmente as questões éticas e de direitos humanos das mulheres, além de números e dados da realidade do aborto no Brasil e no mundo, demonstrados por pesquisadoras/es de diversas áreas do conhecimento e especialistas da área da saúde.
Destacamos algumas das muitas falas precisas e importantes, como a da pesquisadora Débora Diniz da ANIS – Instituto de Bioética, que trouxe uma perspectiva de metodologia científica para mensurar o aborto no Brasil. Já Adriana Dias do Instituto Baresi falou pelas mulheres com deficiência, rebatendo de forma extremamente qualificada o argumento de que o aborto está ligado à eugenia. Outra fala marcante foi a do Conselho Federal de Psicologia – CFP, que discutiu o estigma do aborto e o sofrimento trazido pela maternidade compulsória.
Houve consenso de que o aborto é uma realidade da história natural reprodutiva das mulheres, e que a lei punitiva não impede que 1 a cada 5 mulheres em idade reprodutiva decida interromper uma gestação no Brasil. A lei atual busca estigmatizar e criminalizar as mulheres, e as exposições trouxeram à luz que uma regulamentação atualizada pode garantir que abortos ilegais inseguros se tornem procedimentos seguros e acolhidos pelo serviço de saúde.
Ao mesmo tempo que acontecia a audiência pública, foi organizado um festival, chamado Festival Pela Vida das Mulheres, no Museu Nacional, na região central de Brasília e próximo ao STF, onde durante 3 dias aconteceram diversas atividades, entre elas: oficinas, vivências, debates, rodas de conversa, feira de produtos e alimentos, apresentações culturais e artísticas, e a transmissão ao vivo da audiência. Frequentaram o Festival aproximadamente 2.000 pessoas por dia, entre mulheres de diversas caravanas de todo Brasil que vieram acompanhar de perto esta jornada, e a população local de Brasília, que encontrou no espaço, um local para obter mais informações sobre o tema, fazer pressão e resistência.
No Festival, haviam 4 diferentes espaços: Tenda Jurubeba, espaço dedicado às crianças; Tenda Jandyra Magdalena e Tenda Cláudia Silva Ferreira, onde aconteceram rodas de conversas, debates e oficinas autogestionadas; o Circo Fundamental, espaço de expressão artística e reflexivo sobre as ameaças aos direitos humanos fundamentais; a Tenda Feira Livre Feminista; e o palco principal, onde aconteceram apresentações musicais de mulheres artistas como Luedji Luna (BA), Martinha do Coco (PE/DF), Filhas de Oyá, Batuque Feminista Marielle Vive – Tambores de Safo (CE), poesias com Cleudes Pessoa e Tatiana Nascimento, Tabata Lorena, Nãnan Matos, Forró do B, Vera Verônica, Chinelo de Couro, DJ’s Pati Egito, Karla Testa, Marte, além da presença da Batalha Das Gurias (BDG).
As mobilizações ininterruptas durante o final de semana, culminaram em um “Amanhecer Pela Vida das Mulheres” em frente ao Supremo Tribunal Federal, na manhã do dia 06 de agosto, segundo e último dia da audiência pública. As ativistas fizeram uma vigília durante a madrugada e um ato ecumênico, com a presença de representantes católicas, da umbanda, evangélicas e espíritas.
No segundo dia de exposições na audiência pública, especialmente no período da manhã, foram realizadas diversas falas que se colocaram contrárias a proposição da descriminalização do aborto. As argumentações foram bastante variadas, porém se mantiveram dentro da ideia de que as mulheres são sujeitas sem direito de escolha e decisão sobre seu próprio corpo e reprodução.
Mesmo diante de exposições contrárias, tivemos inúmeros posicionamentos a favor da vida das mulheres. No período da manhã, Lusmarina Campos Garcia, da organização Instituto de Estudos Religiosos (ISER), e Maria José Rosado, da organização Católicas pelo Direito de Decidir, trouxeram falas de enfrentamento e resistência dentro do campo religioso.
No período da tarde, presenciamos os posicionamentos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais, Clínica UERJ de Direitos, Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos da USP – NJP-DH USP, todos a favor da descriminalização.
A audiência pública foi encerrada na noite de segunda feira. Ainda não há previsão da data da votação pelo STF. Muitas especulações sobre a decisão das e dos ministros, porém nenhuma informação concreta. O cenário é confuso, e existem muitos interesses em jogo, e até mesmo ameaças realizadas por políticos (como o Senador Magno Malta) ao STF caso aprove a peça. Não podemos esquecer que uma possível vitória no STF deve ser acompanhada de uma resistência a retrocessos que podem ser votados no Poder Legislativo, vez que são inúmeros os Projetos de Lei em tramitação que desrespeitam os direitos das mulheres.
Enquanto isso, o debate está aberto. É preciso manter a discussão entre a população, para que amadureça a opinião pública para além da míope perspectiva de “direito do nascituro”, e pela expansão da perspectiva do “direito à vida” – a mulher deve ter direito à sua vida, e isso se faz com autonomia e autodeterminação. Precisamos continuar mobilizadas, precisamos manter o assunto em pauta de forma qualificada e lutar pela garantia de nossas vidas e direitos.