Diferentes sujeitos têm empregado o termo “masculinidade tóxica” para iniciar um debate sobre os efeitos nocivos da socialização dos homens e sobre os comportamentos que derivam desse aprendizado das masculinidades. Em linhas gerais, vivemos em uma sociedade em que crianças assignadas ao nascimento como meninos aprendem desde o jardim da infância a se valerem de ferramentas agressivas e verem o mundo a partir de um prisma no qual ou você subjuga ou é subjugado. Nesse mesmo contexto, são ensinados que o lugar daquele que é dominado e reduzido à vontade do outro é o lugar do feminino, o que faz com que as mulheres sejam inferiorizadas e que os homens subjugados sejam aproximados das mulheres em termos de ausência de poder.
“Masculinidade tóxica” aparece como uma terminologia que vai popularizar a discussão em torno de homens e masculinidades, sendo tema de diversas postagens em redes sociais, reportagens em jornais, debates em podcasts e canais do Youtube, entre outras tantas plataformas. O que não acontece é um exame mais detido sobre o tipo de reflexão a qual o termo conduz, como aponta o ativista e escritor John Stoltenberg, autor de uma série de livros sobre masculinidades desde a década de 1980.
Enquanto muitos estão endereçando a resolução dos problemas à discussão da masculinidade tóxica, em busca de masculinidades mais saudáveis, Stoltenberg é radical ao afirmar que os homens precisam desistir da masculinidade. Em entrevista à VICE, ele compara a ideia de “masculinidade saudável” à ideia de “câncer saudável”. Para ele, a masculinidade seria uma identidade produzida inteiramente sobre a opressão de terceiros. As partes da masculinidade que não seriam vistas como “tóxicas”, que não colocariam alguém em posição inferior ou representariam risco ao sujeito, seriam apenas qualidades e ações sem gênero. Quando uma mulher ou um homem tomam decisões morais agindo de maneira a respeitar a própria integridade ou de outros sujeitos, não se trata de uma mulher boa ou de um homem bom, mas de uma pessoa boa ou que tomou boas decisões. O que Stoltenberg quer nos dizer é que, embora tenhamos sido ensinados o contrário, nosso caráter é divorciado de nosso gênero. A tarefa dos homens é então desenvolver a habilidade de tomar decisões, refletindo e combatendo a perspectiva que os ensinou a estar sempre atuando de modo a provar a própria masculinidade, frequentemente por meios violentos e dolorosos.
Embora a discussão em torno de “masculinidades tóxicas” fomente reflexões substantivas em diferentes grupos, é preciso que estejamos atentos aos riscos que o termo coloca quando eclipsa outras formas de abordar o assunto. A terminologia, ao usar o adjetivo tóxico, remete a abordagens patologizantes e moralizantes, que nos afastam dos esforços feministas em não individualizar os problemas de gênero, como uma questão de um sujeito doente e disfuncional, o monstro, mas como um problema cultural, da sociedade, produzido pela ação e transmissão de uma coletividade. Quando um homem levanta a mão e diz “peraí, mas nem todo homem” ou quando responsabilizamos, de maneira punitivista, um único sujeito por eventos como tiroteios em escolas, ações racistas ou violências de outros tipos estamos nos eximindo da responsabilidade por problemas que são sociais e não meramente individuais.
O Coletivo Feminista possui um Grupo Reflexivo de Homens que teve início em 2006, no ano da aprovação da Lei Maria da Penha, e foi integrado ao Coletivo Feminista em 2009. É um espaço para debater assuntos recorrentes da masculinidade, o encontro de homens em questionamento, conflito e/ou situação de violência doméstica ou de gênero.
Tem por objetivo conhecer, debater e possibilitar o aprendizado das masculinidades que respeitem e promovam os direitos humanos das mulheres e homens.
Utilizar o termo masculinidade tóxica implica, de um lado, uma busca por masculinidades não-tóxicas e, por outro lado, supõe que a experiência das feminilidades é um passeio no parque, não apresentando nenhum grau significativo de toxicidade. Perde de vista que o enclausuramento representado pelas expectativas dicotômicas de gênero violentam tanto homens quanto mulheres e sujeitos que não buscam ou conseguem se encaixar em algum dos polos.
O termo também apresenta uma abordagem universalista da masculinidade, não considerando que os privilégios e as mazelas de ser homem no mundo não são idênticos. Os sujeitos são atravessados por diferentes formas de pertencimento social, como cor/raça, classe, sexualidade, regionalidade, deficiência, religião, o que torna a palavra “tóxico” um conceito cujo sentido não é compartilhado igualmente entre os sujeitos. Da mesma forma operam universalizações como a noção de “privilégio dos homens”, que ignora, por exemplo, o encarceramento em massa de homens negros, o espancamento e assassinato de homens gays e trans e tantas outras formas de experiência nem tão confortáveis da masculinidade em uma sociedade que não é apenas sexista, mas também racista, transfóbica, homofóbica, classista e assim por diante.
Se queremos um mundo no qual as pessoas possam viver vidas mais livres e com justiça social, sem ter que escolher entre performar uma masculinidade ou feminilidade ideal, é preciso que entendamos de uma vez por todas que o mundo é composto por um grande e múltiplo espectro de possibilidades em termos de gênero e não só por caixinhas descritivas e normativas correspondentes a homens e mulheres.
Antropóloga e colaboradora da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, atuando no Núcleo de Masculinidades, principalmente com pesquisas, cursos e intervenções que abordam questões de gênero, masculinidades, violências e feminismos. É doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (PPGAS/UNICAMP) e mestra em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (PPGAS/USP). Integra o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (UNICAMP) e o Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP).
Contato: isabela.venturoza@yahoo.com.br